Voz
solitária da autoralidade audiovisual brasileira em um circuito infestado por
candidatos a blockbuster, “Quando eu
era vivo”, de Marco Dutra, instala-se nas telas, em um período tomado por
candidatos ao Oscar, diferenciado por seu investimento na cartilha dos filmes
de gênero. Com ele, o público tem a chance de provar da receita do terror a
partir de um tempero nacional. É o que dá uma distinção de arrancada ao segundo
longa-metragem do realizador (em parceria com Juliana Rojas) de “Trabalhar
cansa” (2011). Ainda no plano das aparências, do contato mais superficial, vem
a surpresa de se encontrar um Antonio Fagundes disforme, de cabeça mal raspada
e pelancas caídas pelo rosto, sempre portando pequenos halteres de ginástica
nas mãos.
Igualmente
surpreendente é a presença de Sandy Leah num projeto assim, de horror, com
dinâmica similar a dos clássicos sombrios de Roman Polanski, sobretudo “O
inquilino” (1976). Entre eles, domando um cabo de guerra entre a truculência
paterna e a doçura de uma jovem à flor do desejo, vem um dos maiores atores que
o cinema desta pátria ajudou a popularizar: Marat Descartes, aqui no apogeu de
suas virtudes cênicas.
Mas isso
tudo é só a casca. Por baixo dela vem um romance, “A arte de produzir efeito
sem causa”, escrito pelo mestre supremo do quadrinho nacional, Lourenço
Mutarelli, a quem Marco Dutra confiou uma especialíssima participação. Do
livro, vieram o carinho disfarçado da tensão de um amor entre pai e filho e um
clima de mistério conectado aos estudos da demonologia como prática de fé. O
que vem além daí – e grafe o Além assim, com “A” -, parte da imaginação de
Dutra e da roteirista Gabriela Amaral Almeida, diretora do premiado
curta-metragem “A mão que afaga” (2012). Com um molho extra: a fotografia de
Ivo Lopes Araújo, o esteta visual da novíssima geração.
Marat é
Júnior, perdedor nato que, após ser abandonado pela mulher e perder a guarda do
filho, volta à casa do pai (Fagundes) em busca de um teto e de segurança
afetiva. Há um impasse entre eles, indisfarçável aos olhos de Bruna (Sandy),
estudante de música que aluga um quarto na casa do personagem de Fagundes, hoje
um viúvo aposentado. O mal-estar entre os dois tangencia os infortúnios
recentes de Júnior, mas origina-se na morte da mãe deste, interpretada por Helena
Albergaria, atriz-assinatura de Dutra.
Ela aqui
paira como uma presença espectral, alimentando um complexo de Édipo satânico,
que joga filho contra pai, sob a fricção de uma força diabólica. Esta só fica
clara quando Júnior reencontra seu irmão, Pedro (Kiko Bertholini, numa atuação
curta mas devastadora), esquizofrênico assolado por assombrações. O encontro
entre os dois é antecedido por uma ciranda de esquisitices domésticas nas qual
Júnior, segundo após segundo, perde sua lucidez, assolado por um sentimento de
paranoia.
Tudo é
verossímil, tudo é realismo, tudo é mundano, até um clique, até o encontro dos
irmãos. Daí pra frente, o filme cai nas mãos do Demônio, Marat modula sua voz
numa serenidade perturbadora e Fagundes lança mão de todos os seus dotes interpretativos
para traduzir a falência de um pai diante da loucura filial e da onipresença
fantasma de uma mulher defunta cuja morte lhe caiu como uma bênção.
Comparações
com “O iluminado” (1981) são óbvias por conta do visual descabelado e salivante
de Marat como Júnior. Mas o diálogo da narrativa é maior com o terror europeu
dos anos 1960/70, a partir da obra de diretores como Georges Franju (“Os olhos
sem rosto”) e Dario Argento (“O gato de nove caudas”), revisitados a partir de
um formato brasileiríssimo. Trata-se do primeiro grande filme nacional de 2014.
Que venham mais.
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