terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Um presente sobrenatural de Marco Dutra


Voz solitária da autoralidade audiovisual brasileira em um circuito infestado por candidatos a blockbuster, “Quando eu era vivo”, de Marco Dutra, instala-se nas telas, em um período tomado por candidatos ao Oscar, diferenciado por seu investimento na cartilha dos filmes de gênero. Com ele, o público tem a chance de provar da receita do terror a partir de um tempero nacional. É o que dá uma distinção de arrancada ao segundo longa-metragem do realizador (em parceria com Juliana Rojas) de “Trabalhar cansa” (2011). Ainda no plano das aparências, do contato mais superficial, vem a surpresa de se encontrar um Antonio Fagundes disforme, de cabeça mal raspada e pelancas caídas pelo rosto, sempre portando pequenos halteres de ginástica nas mãos.

Igualmente surpreendente é a presença de Sandy Leah num projeto assim, de horror, com dinâmica similar a dos clássicos sombrios de Roman Polanski, sobretudo “O inquilino” (1976). Entre eles, domando um cabo de guerra entre a truculência paterna e a doçura de uma jovem à flor do desejo, vem um dos maiores atores que o cinema desta pátria ajudou a popularizar: Marat Descartes, aqui no apogeu de suas virtudes cênicas.

Mas isso tudo é só a casca. Por baixo dela vem um romance, “A arte de produzir efeito sem causa”, escrito pelo mestre supremo do quadrinho nacional, Lourenço Mutarelli, a quem Marco Dutra confiou uma especialíssima participação. Do livro, vieram o carinho disfarçado da tensão de um amor entre pai e filho e um clima de mistério conectado aos estudos da demonologia como prática de fé. O que vem além daí – e grafe o Além assim, com “A” -, parte da imaginação de Dutra e da roteirista Gabriela Amaral Almeida, diretora do premiado curta-metragem “A mão que afaga” (2012). Com um molho extra: a fotografia de Ivo Lopes Araújo, o esteta visual da novíssima geração.



Marat é Júnior, perdedor nato que, após ser abandonado pela mulher e perder a guarda do filho, volta à casa do pai (Fagundes) em busca de um teto e de segurança afetiva. Há um impasse entre eles, indisfarçável aos olhos de Bruna (Sandy), estudante de música que aluga um quarto na casa do personagem de Fagundes, hoje um viúvo aposentado. O mal-estar entre os dois tangencia os infortúnios recentes de Júnior, mas origina-se na morte da mãe deste, interpretada por Helena Albergaria, atriz-assinatura de Dutra.

Ela aqui paira como uma presença espectral, alimentando um complexo de Édipo satânico, que joga filho contra pai, sob a fricção de uma força diabólica. Esta só fica clara quando Júnior reencontra seu irmão, Pedro (Kiko Bertholini, numa atuação curta mas devastadora), esquizofrênico assolado por assombrações. O encontro entre os dois é antecedido por uma ciranda de esquisitices domésticas nas qual Júnior, segundo após segundo, perde sua lucidez, assolado por um sentimento de paranoia.

Tudo é verossímil, tudo é realismo, tudo é mundano, até um clique, até o encontro dos irmãos. Daí pra frente, o filme cai nas mãos do Demônio, Marat modula sua voz numa serenidade perturbadora e Fagundes lança mão de todos os seus dotes interpretativos para traduzir a falência de um pai diante da loucura filial e da onipresença fantasma de uma mulher defunta cuja morte lhe caiu como uma bênção.

Comparações com “O iluminado” (1981) são óbvias por conta do visual descabelado e salivante de Marat como Júnior. Mas o diálogo da narrativa é maior com o terror europeu dos anos 1960/70, a partir da obra de diretores como Georges Franju (“Os olhos sem rosto”) e Dario Argento (“O gato de nove caudas”), revisitados a partir de um formato brasileiríssimo. Trata-se do primeiro grande filme nacional de 2014. Que venham mais.

  

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